VOCÊ NÃO ESTÁ NA PÁGINA PRINCIPAL. CLIQUE AQUI PARA RETORNAR



segunda-feira, junho 05, 2006

Biografia – Franz Kafka - 1883-1924




O mais afortunado e desafortunado dos homens


Uma Pequena Fábula

Franz Kafka nasceu dentro do fluxo de uma discórdia social e do peso morto da burocracia, também conhecida como Praga. Com a religião e o pai empunhando um martelo sobre sua cabeça, Kafka cresceu em uma cidade que, sob o assalto do mundo moderno, deixou de fazer qualquer sentido. Era uma cidade que havia perdido sua identidade cultural, sobrecarregada em administrar um império. Havia o contraste entre os dois mundos ameaçados de cruzar a fina linha do absurdo. Como se não tivesse qualquer escolha, como se a metrópole tivesse colada a ele de forma louca, Kafka a tomou, a fez sua própria, e achou que nunca poderia deixá-la por muito tempo. Ele pairou em torno de Praga por toda a sua vida, assim como Joyce fez com Dublin, como Thoreau fez com Concórdia, Kafka tomou sua cidade e construiu para ela uma mitologia de estórias, construídas tão meticulosamente e acidentalmente como um gabinete administrativo repleto de documentos. Nos trabalhos de Franz Kafka, Praga é cada cidade tocada pela brutal eficiência industrial, onde humanos deslizam silenciosamente para o fatal mecanismo de um vasto e irreal maquinário. Mas se a coleção de trabalhos de Kafka forma um privado e sonhado retrato de Praga, também revela um retrato de um sonhador, lutando para escrever seu mundo interior como um mundo mítico, onde cada homem trabalhando silenciosamente em uma sobrecarregada mesa de trabalho é esvaziado de sua identidade, onde os conflitos entre pais e filhos são encenados no Éden, e onde o ato de escrever possui o belo terror do parto. Para melhor entender esse mundo, devemos olhar para a paisagem absorvida pela imaginação criativa de Kafka, das dinâmicas da cultura, comunidade e família às apertadas escadas pelas quais teve que correr.

Como Kafka sempre suspeitou, devemos começar com seu pai.



Os cuidados de um homem de família

Hermann Kafka, pai de Franz KafkaHermann Kafka cresceu em Wossek, uma coesa vila judaica, a aproximadamente 75 quilômetros ao sul de Praga. Seu próprio pai, Jakob, era o açougueiro ritual da cidade. Era uma profissão que forçava a família se apertar pela sobrevivência e não tinham como manter qualquer o luxo que seu filho Franz iria eventualmente experimentar. Na época em que Hermann já tinha idade bastante para dar uma mãozinha, começou a trabalhar entregando carne kosher atravessando longas distâncias e em péssimas condições climáticas.

Talvez, como resultado desse aflitivo estilo de vida, Hermann cresceu uma criança forte, e desde cedo, percebeu que queria algo melhor da vida. Deixou a casa aos 14 anos, se alistou no exército aos 19, e em 1882, quando tinha trinta anos, se mudou para Praga para tentar a sorte. Mais tarde, formou uma parceria nos negócios e abriu uma elegante loja de artigos de luxo. Logo em seguida, se encontrou e se casou com Julie Löwy de 26 anos, filha de um bem sucedido cervejeiro. Impressionado com a personalidade ambiciosa de Hermann e seu belo e bem desenhado porte físico, Julie compreendeu o valor do trabalho duro, e manteve atitudes bem conservadoras em relação ao seu papel de esposa. Devotou-se ao seu marido, mantendo-se ocupada na maior parte do dia na loja e jogando cartas com ele no fim do dia. Quando Franz nasceu em 3 de julho de 1883, foi deixado aos cuidados de uma enfermeira enquanto Julie voltava ao trabalho.

Julie Löwry, mãe de Kafka Na época do nascimento de Franz, Praga era ma das maiores cidades no Império Austro-Húngaro que lentamente se desmantelava. Em 1867, um tratado foi firmado entre a Áustria alemã e os Magiares da Hungria, criando uma “Monarquia Dual” dividia pelo rio Leith. No lado leste do rio estava o Reino da Hungria, e do oeste, o Império da Áustria. A Áustria era geralmente governada como uma nação-estado Alemã, na verdade alienando grande parte das minorias que existiam dentro de suas fronteiras, incluindo os Checos, que se achavam particularmente aborrecidos por sua exclusão. Movimentos nacionalistas surgiram, colocando a população checa em conflito direto com a população Alemã. A lei favorecia os alemães, e checos se sentiam ofendidos, e os judeus, por sua vez, ficaram encurralados nesse meio.

Para conseguir qualquer mobilidade social, uma família judia era forçada a aprender alemão, o que os concedia a eminência dos checos. Não apenas lhe trazia mais privilégios entre os alemães, que sempre consideraram os judeus como estrangeiros – na melhor das hipóteses. Considerando essa inevitável posição, a comunidade judaica se tornou bode expiatório para as frustrações de todas as pessoas que a cercava. Enquanto Franz aprenderia alemão como sua primeira língua, Hermann navegava nessas águas perigosas falando dois idiomas – o checo de sua juventude e o alemão da classe burguesa. (O próprio nome “Kafka” é uma palavra checa com uma grafia alemanizada: kavka em checo significa “gralha”). A fluência de Hermann em checo o ajudou a conquistar mais clientes, e o permitia uma clara comunicação com os empregados eslavos – sobre os quais se referia, de forma privada, como seus “inimigos pagos”. Em certa ocasião, quando uma revolta destruiu muitos negociantes judeus, o estabelecimento de Hermann foi deixado intacto. Ele falava checo, e era considerado, portanto, um deles.

As três irmãs de Kafka - Valli, Elli e Ottla em 1898Os sonhos de uma renda robusta alimentados por Hermann o mantiveram focado em seus negócios, e Franz era deixado com freqüência aos cuidados de uma governanta, como era prática comum na classe média. Quando ele tinha seis anos, dois irmãos mais novos já tinham morrido na infância, e a família havia se mudado cinco vezes. Essas experiências, sem dúvida, deixaram na criança um certo senso de instabilidade, mas a família continuava a crescer. Em 1892, Franz tinha três irmãs – Gabriele, Valerie e Ottilie (apelidadas de Elli, Valli e Ottla). E era com essa família que ele iria contar por toda a sua vida.

Franz Kafka em 1884 - Com apenas um anoO profundo senso de necessidade de Kafka, tanto financeira quanto emocional, sempre foram sentimentos complicados de ressentimentos – ou, no mínimo, pelo desejo de fuga. Na verdade, grande parte dos seus sentimentos em relação à família eram mistos e contraditórios, e esse conflito criou raiz profunda em sua psique, emergindo de formas inesperadas durante sua vida. Seu pai, que poderia ser, certamente, dominador, manteve o jovem Franz em um padrão muito mais alto do que aquele que estabeleceu pra si mesmo; como conseqüência, os sentimentos do filho de amor e dever se embaraçavam a uma profunda convicção de ser um desapontamento total. Como sua mãe sempre tomava partido do pai no que dizia respeito a ele, a afeição que tinha por ela era temperada pelo rancor de uma criança abandonada. A pessoa na família com quem realmente estabeleceu uma verdadeira ligação foi com sua irmã caçula Ottla, que era, por natureza, um espírito livre e rebelde. Ele compararia, mais tarde, seu relacionamento com Ottla com uma “conspiração” contra seu pai autocrata.


Casa onde Franz Kafka Nasceu Mais tarde, Franz se matriculou na Escola Nacional Cívica Elementar Alemã. Embora odiasse ir à escola – freqüentemente arrastado pela cozinheira da família – era um modelo de estudante. Depois de quatro anos na escola elementar, foi admitido no famoso e restrito Ginásio Humanístico Nacional Alemão. Como a maioria das escolas de então, era designada muito mais para a doutrinação do que para a educação, inferior em imaginação e de uma rigidez sem sentido. Como um todo, a instituição colocava um tremendo foco na memorização, a ponto de um professor declarar que oito horas de gramática do Latim por semana não era o suficiente. Grego também era decorado, com pouca discussão do conteúdo ou contexto. Um professor introduziu os alunos às obras de Goethe, insistindo que seguissem o modelo de frases e sentenças utilizados pelo famoso escritor alemão – a idéia de realmente explorar o que aquelas sentenças significavam, estava, naturalmente, fora de questão. E sempre havia a ameaça de exames.

Franz em seu Bar MitzvahA pressão constante deixou o sistema nervoso de Kafka em ruínas. Após um particular e sofrido período de exames escolares, ele sucumbiu a uma exaustão física, e foi forçado a tirar um longo período de férias para se recuperar. Apesar de seu excelente desempenho, ele se via como o mais estúpido dos alunos da classe, e vivia em constante medo de ter a sua estupidez desmascarada. Imaginava que cada exame resultaria e um tremendo fracasso; mas a despeito do seu pessimismo (ou talvez por causa dele), ele sempre passava, e muitas vezes de forma excelente. Se não tivesse valido por outras coisas, o Ginásio o ensinou como ter sucesso apesar do tédio e controle excessivo, e aprendeu a sobreviver em lugares onde jamais gostaria de estar.

Quando chegou a época do seu bar mitzvah, seus 13 anos se aproximaram como apenas mais uma tarefa de memorização. Seu pai, criado em um vilarejo definido pelo Judaísmo, sempre exigiu que Kafka fosse devoto; mas ao mesmo tempo, ele mesmo raramente ia à sinagoga. Religião, para Hermann, sempre foi uma questão de realidade concreta. Se a sociedade o visse como uma boa pessoa, então poderia se considerar razoavelmente devoto, e não havia razão para se incomodar com todas aquelas práticas judaicas que o incomodavam. Franz, tendo crescido em um mundo onde religião e vida eram tão ligadas, mantinha uma visão diferente. Religião era algo separado da realidade, e se as regras do céu fossem aplicadas à terra, seriam seguidas de forma dolorosa. Naturalmente, Kafka viu a ambivalência de seu pai no que se referia à Sinagoga como uma grave hipocrisia, e desde cedo, se considerou um cético religioso. Argumentava com amigos sobre a existência de Deus, e logo se interessou por Spinoza, Nietzsche e Darwin.

Kafka concluiu seus estudos no Ginásio em julho de 1901. Para entrar na Universidade, teve que se submeter aos exames Abitur. Naturalmente, ele não esperava passar, e naturalmente, passou. Em novembro, estava matriculado na Universidade Alemã de Praga. Mas uma vez lá, Kafka não sabia o que fazer de sua vida. A princípio, seguiu seu amigo Hugo Bergmann no curso de Química, mas não era muito bom nisso, e então mudou para Direito. Não que Kafka gostasse particularmente dessa matéria – ele comparou sua vida escolar a “serragem moída” – mas Direito oferecia um espectro mais amplo de possibilidades; e como bônus, pois quanto mais longo fosse o período requerido pelo curso, permitiria que ganhasse tempo. Sempre que podia, assistia aulas da área de Humanidades para quebrar o marasmo. Também freqüentou palestras patrocinadas pelo “The Hall”, uma associação formada basicamente por estudantes judeus aspirantes a intelectuais e políticos.


Descrição de uma Luta

Kafka aos Dois anosSempre houve uma tendência criativa em Kafka. Como um leitor voraz, ele descobriu bem cedo, na infância, que queria ser escritor. Em torno dos quatorze anos, escreveu peças para suas irmãs interpretarem nas festas de aniversário de seus pais, e em 1899 começou experimentar a ficção. Mas escrever não era um modo de ganhar a vida, e seu pai nunca aprovaria a escolha de uma carreira tão distante da vida prática. Além disso, parecia que Kafka não gostava de nada que escreveu. O único trabalho desse período que escapou da destruição foi uma estória chamada Conto de um Magrelo Tímido e Impuro no Coração, que só sobreviveu por estar incluído em uma carta a seu amigo Oskar Pollak.

Em 1904, Kafka começou a trabalhar em uma novela sob o título A Criança e a Cidade, mas o projeto foi abandonado e o manuscrito perdido. Se acalmando mais uma vez, começou A Descrição de uma Luta, uma peça que revisitaria vezes e vezes durante os cinco anos seguintes. Dos primeiros trabalhos de Kafka, de substância, que sobreviveram, claramente revelam traços de seu outromundismo e uma espécie de imaginação mórbida. Infelizmente, falta à estória a coerência necessária para tornar seu simbolismo efetivo, e seus personagens e ambientes desenvolvem um inacreditável malabarismo em meio a um já sombrio enredo. Percebendo que tinha problemas com sua narrativa, Kafka separou porções da estória, as quais revisaria para sua primeira publicação em 1908. Mas agora, parecia haver alguma esperança para esses escritos; contudo, isso não era suficiente para fazê-lo desistir do seu curso. Após uma breve e improdutiva incursão na Filosofia, ele continuou estudando Direito. Então em 1905, mostrou A Descrição de uma Luta ao seu amigo Max Brod.

Kafka com 10 anos, Valli à esquerda e Elli no centroKafka conheceu Max Brod em outubro de 1902. Um ano mais novo que Kafka, Brod era, de muitas maneiras, o seu oposto. Delicado e ligeiramente desengonçado, mas contudo, um tanto mulherengo, e irradiava constante entusiasmo e de uma energia sem limites. Mesmo ainda adolescente, Brod era reconhecidamente culto, se considerando um escritor, um poeta, um crítico e um músico. Um membro dinâmico do comitê de cultura do "The Hall”, conheceu Kafka após uma de suas palestras sobre Schopenhauer. Após descartar Nietzsche como “uma fraude”, o jovem palestrante se viu em meio a um debate com um dos membros da audiência que tinha uma idéia bem diferente. Era o início de uma amizade que duraria por todo o resta da curta vida de Kafka.

Embora tenha levado dois anos para que Kafka finalmente mostrasse seu próprio trabalho a Brod, que ao ler A Descrição de uma Luta, de imediato percebeu que Kafka era dotado de um brilhantismo genial. Trazendo sua incansável energia para estimular seu amigo, Brod constantemente instigava Kafka a manter-se escrevendo, e deixar de destruir seus manuscritos e publicar seus trabalhos.

Max Brod -Melhor amigo e executor da obra de Kafka - 1884-1968Seria impossível subestimar a importância de Max Brod em relação ao lugar que Kafka ocupa na literatura. Após a morte de Kafka, foi Max Brod que reuniu todos os escritos de Kafka, assumindo o difícil papel de editor. Foi Max Brod que assegurou que os escritos de seu amigo sobrevivessem às chamas Nazistas. Sem a fé e perseverança de Brod, Franz Kafka poderia, certamente, ter desaparecido na obscuridade, não mais famoso hoje do que seus amigos Oskar Pollak, Franz Werfel, Felix Weltsch – ou o próprio Max Brod.

É uma auto-evidência e famosa ironia: embora Brod fosse um mais prolífico e muito mais conhecido escritor na época, a história se lembra dele, acima de tudo, como o biógrafo e executor literário de Franz Kafka.

Os anos de Kafka, como estudante universitário, o viram inaugurar mais do que sua carreira de escritor – foi durante esses anos que ele começou sua ambígua relação com o sexo. Em 1903, perdeu sua virgindade uma checa vendedora de loja; um cenário um tanto comum, uma vendedora de loja entre muitas que ganhavam um dinheiro extra através de uma forma não profissional de prostituição. Depois disso, Kafka relutantemente adquiriu o hábito de freqüentar bordéis, uma preocupação usual aos estudantes universitários da época. Houve mais algumas “vendedoras de loja” e “garçonetes”, e em 1905 teve um affair com uma mulher mais velha quando estava em férias na Suíça; embora o exato nível de intimidade nesse affair seja desconhecido.

Franz aos 19 anos quando começou a trabalharComo se pode esperar de Kafka, seus encontros sexuais trouxeram conflitos emocionais – a ambivalência da excitação e da culpa. Sexo tanto compelia quanto enojava Kafka. Era atraído a isso, porque – bem, porque não estava morto; mas o fisicalismo do ato o perturbava. Ele não suportava as funções corporais, embora o corpo em si, possuísse inegáveis qualidades atrativas. Foi uma crise que ele nunca solucionaria, e seus vários relacionamentos, todos trouxeram sua parcela de impulsos confusos, desejos frustrados, e dessatisfação sexual. Esse conflito encontraria seu espaço em seus escritos, e pode-se facilmente identificar murmúrios eroticamente perturbados em quase toda a sua obra.

Há, ainda, a tendência de super-romantizar o vazio e desolação dos primeiros anos de Kafka, especialmente aqueles dos primeiros encontros sexuais.

Enquanto certamente neurótico, supersensível, e ocasionalmente dado à auto-abominação, Kafka não era exatamente o cesto de excentricidades o ele mesmo percebia em seu próprio reflexo. A maioria de seus amigos o considerava saudável, bonito, alto e elegante, e de uma inteligência incomum, e até mesmo admitiu ter se sentido “feliz” após a experiência como a vendedora de loja. Embora os escritos de Kafka sejam duramente pessimistas, Brod argumenta que ele era realmente uma pessoa de fácil convivência, embora um tanto quieto, e, sem dúvida alguma, obcecado com a procura pela “pureza”. Enquanto Brod percebesse a tremenda tristeza pairando sobre a superfície do sardônico, cínico sorriso de amigo, ele preferiu falar do maravilhoso senso de humor de Kafka, sua fidelidade, sua habilidade em dizer várias coisas em poucas palavras, e acima de tudo, sua fascinação com “a grandeza da natureza, o efeito curativo, saudável, o som e a estabilidade das coisas simples”.

Kafka em sua Graduação em Direito aos 23 anosEm 1906, Kafka terminou seus exames e se tornou oficialmente Doutor em Direito. Após um ano de obrigatórios serviços gratuitos para os tribunais, Dr. Franz Kafka começou a trabalhar na Assicurazioni Generali, uma agressiva companhia de seguros Italiana. Com o seu salário miserável, regulamentos de esmagar a alma, e serões não reconhecidos, foi provavelmente, o pior lugar possível para Kafka trabalhar, do qual ele conseguiu fugir dentro de um ano. Pedindo a ajuda de um amigo, conseguiu um trabalho no Instituto de Seguridade de Acidente de Trabalhistas, uma organização dirigida, em parte, pelo governo Austríaco.

Embora Kafka não chegasse a gostar desse trabalho, ele foi um bom trabalhador, e sentia um genuíno grau de simpatia pelas pessoas que ele representava. Ele freqüentemente e secretamente tomava partido dos mesmos em prejuízo da empresa, dando, algumas vezes, indicações de como conseguir uma indenização mais justa ou polpuda. Escreveu inúmeros relatórios para o Instituto, o que lhe deu a oportunidade de refinar sua prosa, e seu estilo único, e ocasionalmente recorreu àquelas afáveis redações. Apesar do fato dessa burocracia ser freqüentemente parodiada nos escritos de Kafka, ele era bem quisto por seus superiores e colegas de trabalho, e tinha um bom nível de responsabilidade. Sua competência foi recompensada, e obteve várias promoções e ascensões durante o curso de sua carreira. Também conseguiu uma notável leniência em relação ao número de licenças médicas requeridas, que se tornaram mais freqüentes até a sua aposentadoria dois anos antes de sua morte.

Seu novo trabalho lhe permitiu tempo para escrever, e em 1908, foi publicado pela primeira vez: oito trabalhos curtos compilados sob o título Meditação, aparecendo na Hyperiom, uma revista bimestral editada pelo sócio de Brod, Franz Blei. Em 1910, cinco trabalhos adicionais, incluindo fragmentos de A Descrição de uma Luta, foram publicados em Bohemia. Por causa de sua natureza vaga e impressionista, o compararam a Robert Walser. Fragmentos do pensamento e imagens, seu trabalho centrado em uma gélida cidade, onde os personagens vagam em bondes ou ficam imóveis em elevadores, pensando sobre modos de fugir. Uma vez ou outra, a América surge inesperadamente como um lugar de força e infinita liberação.

Avaliando seu humor a partir desses trabalhos, parecia que Kafka gostaria de fugir, possivelmente para qualquer lugar – mas o único lugar para onde fugiu foi para os seus escritos, os quais se tornaram rapidamente um consolo e uma necessidade.
Infelizmente, as idéias nem sempre estavam lá quando ele as queria, e ele ainda tinha problemas em acabar o que havia iniciado. Durante um período de seca de idéias, ele pegou um diário para manter a prática; mas a seca continuou, e Kafka simplesmente não conseguia concluir nenhum trabalho. Em 1911, Brod o convenceu a colaborar com o um romance intitulado “Richard e Samuel”, uma paródia na qual eles poderiam trocar piadas e gracejos um com o outro. Richard possuía algumas características de Kafka e Samuel algumas de Brod. Esse trabalho também, foi abandonado mais tarde. Contudo, Kafka seguiu em frente. Adquiriu o hábito de trabalhar de dia e escrever de noite, lutando para criar algo que o fizesse sentir que valeu a pena.


Franz na PraiaEm outubro, Brod levou Kafka a uma apresentação do Teatro Iídiche. Embora tivesse ignorado ostentosamente uma produção similar um ano antes, dessa vez, a apresentação o tocou. Isto o absorveu completamente: em algum lugar das esquisitices das peças, ele encontrou um exemplo da cultura judaica que substituía o sionismo ou um judaísmo simplificado. Aquilo era um exemplo da cultura judaica como tinha sido vivida, uma cultura popular, uma que permitia expressões artísticas e era ao mesmo tempo religiosa. Ele escreveu, em 4 de outubro de 1911, uma anotação no diário: "Se eu quisesse explicá-los [um casal que interpretou com a trupe] a alguém a quem eu não quisesse confessar minha ignorância, eu admitiria que os considero sacristãos, empregados do templo, notórios preguiçosos com que a comunidade concorda, ... pessoas que, precisamente em decorrência de serem separados, estão muito próximas do centro da vida da comunidade... pessoas que são judeus de uma pureza especial porque vivem unicamente na religião, mas vivem nela sem esforço, entendimento ou sofrimento".

Kafka se tornou grande amigo de um dos atores, Jischak Löwy, e desenvolveu uma paixão por uma das atrizes, Mania Tschissik – que era, incidentalmente, uma mulher casada. Seu pai desaprovou sua amizade com Löwy. Fiel a sua criação de cidade pequena, ele via os atores como um pouco mais que vagabundos perambulantes. Em certo momento, Hermann comparou Löwy com um cachorro, mas isso não seria impedimento para Kafka – e afinal, seu pai menosprezava todos os seus amigos. Kafka tinha descoberto uma vibrante criatividade religiosa, e não estava disposto a deixá-la escapar.

Kafka surgiu, no ano novo, com esquetes biográficos de Löwy, Estudos sobre o Teatro Iídiche e peças sobre o Judaísmo. Ao mesmo tempo, continuou a explorar temas sobre fuga e refúgio, trabalhando e um romance chamado O Homem que Desapareceu, um trabalho em constante progresso, que ele frequentemente chamava de seu “Romance Americano”. (Brod mudaria mais tarde o título de Der Verschollene para Amerika). Ele conta a estória de um jovem chamado Karl Rossmann, que é empurrado para Nova Iorque após engravidar a empregada. Karl passa o resto da estória vagando, em busca de um lugar para se estabelecer. É claro, nada mais funciona para Karl, e a última cena do romance inacabado, o focaliza viajando para o Oeste na esperança de encontrar um lar. Se nos permitirmos ver Karl Rossmann como uma projeção de Kafka, poderíamos ver Kafka, através de Amerika, lentamente convencendo a si mesmo que seus sonhos de vôo continuariam em sua cabeça – a realidade não trata com delicadeza os vagos e gigantescos planos. Se ele quisesse um lugar onde pudesse se sentir confortável, um lugar de descanso, um lar, ele teria que encontrar isso em suas proximidades.

Franz com Felice Bauer em Budapeste em 1917Em agosto daquele ano, Kafka encontrou Felice Bauer na casa de Max Brod. Uma secretária executiva em uma companhia de ditafone. Felice era uma jovem competente e um tanto estóica de Berlim. Após uma rápida conversa amistosa, quase que fazendo piada, discutiram a possibilidade de uma viagem à Palestina juntos. Ele começara a se corresponder, e logo ele estava obcecado, inundando Felice com rios de cartas e ficando insuportavelmente ansioso se ela não respondia com a rapidez necessária. Ao mesmo tempo, ele não se importava em encontrá-la pessoalmente outra vez, preferindo prosseguir com todo o relacionamento em palavras. Isso era um notável início de um atormentador relacionamento de cinco anos.


A Metamorfose

Se foi o Teatro Iídiche, o início de Amerika, o encontro com Felice Bauer, ou um evento não registrado e esquecido, nunca saberemos, mas alguma coisa fagulhou a imaginação de Kafka e incendiou sua energia criativa. Na noite de 22 de setembro de 1912, ele escreveu por oito horas ininterruptas sua principal novela, O Veredicto. A forma repentina dessa criação chegou como uma revelação; ele chegou a comparar esse fato com um parto. “Só dessa forma”, escreveu em seu diário em seguida, “escrever é possível, apenas com tal coerência, com tão completa abertura do corpo e da alma”. A obra marcou uma virada na criatividade. Ele tinha escrito uma estória que ele podia ler com profundo interesse, mesmo um ano após tê-la completado.

Em O Veredicto, o protagonista, que está para se casar, se envolve em problemas com seu pai, que está ressentido por ter perdido o controle dos negócios da família para o seu filho. O pai o acusa de ser infiel a um amigo que se encontra distante, em algum lugar remoto na Rússia. Esse conflito chega ao clímax quando o pai condena o filho à morte por afogamento – e o filho cumpre essa sentença voluntária e obedientemente. Se lêssemos essa estória como autobiográfica, seria imprudente, mas ela permite a Kafka a chance de expressar o desespero e amargura que sentia na época. Seu pai havia, recentemente, entrado em um negócio de material a prova de fogo com seu cunhado, e Hermann vinha pressionando Franz com freqüência para supervisionar a fábrica, o que tomava muito do tempo livre de Kafka, pois ele ainda trabalhava no Instituto, e isso o incomodava pois odiava o ambiente da fábrica, e logo o seu pai começaria a culpá-lo quando os negócios começaram a ter prejuízos. Depois que Brod informou à mãe de Kafka que seu filho vinha alimentando idéias de suicídio, Julie secretamente interveio, e a carga de trabalho de Kafka foi reduzida – mas sua inimizade com o pai apenas aumentou.

Em novembro, Kafka começou A Metamorfose. Escrita em um estilo frio, que não era nem alegoria nem exatamente uma fantasia, A Metamorfose retrata o negociante Gregor Samsa, que acorda em uma manhã e se descobre transformado em um enorme inseto. Ao descobrir isso, sua família tem algumas dificuldades em lidar com esse novo estilo de vida. Gregor passa seu tempo de várias formas perdido em seus pensamentos, preocupado com sua existência, ou sentindo-se culpado com o fardo que passara a ser pra sua família. Embora Kafka consistentemente menosprezasse sua estória com comentários como, “E estou agora lendo A Metamorfose e a acho ruim”, e “Final inconcebível. Quase imperfeita até à sua medula”, hoje é reconhecida como a pedra angular na fundação da literatura moderna.

Franz e sua irmã caçula e preferida OttlaTanto O Veredicto quanto A Metamorfose, certamente refletem as recentes experiências de Kafka. Seus personagens desempenham gestos exagerados de uma peça super-dramática. Pequenas referências religiosas revelam opiniões oscilantes sobre Cristianismo e Judaísmo – cruzes e maçãs em abundância. Há uma constante luta com a família, religião, e o local de trabalho. A possibilidade – ou ameaça - de casamento se agiganta. As estórias podem ser lidas como representativas de uma tensão entre os negócios e o estilo de vida artístico: Poderia o amigo de Bendemann na Rússia representar Kafka como escritor? Poderia Samsa, o inseto ser o artista que sempre se disfarçou ou se encobriu? Embora haja muitas formas de ler essas estórias, é impossível chegar a uma conclusão definitiva – e nem Kafka o fez, resistindo às interpretações simplistas. De tudo isso, é certo que Kafka utilizou elementos de sua vida, os compactou, e os lançou em um estilo de prosa que hoje é reconhecido por todo o mundo.

Após essa confusão inspirada, a produtividade literária de Kafka caiu dramaticamente, embora tanto O Veredicto quanto O Foguista (o primeiro capítulo de América) tenham sido publicados como alguma aclamação local. Por um tempo, ele considerou a possibilidade de publicar todos os três trabalhos sob o revelador título Os Filhos, mas seu editor silenciosamente deixou o assunto de lado – afinal, Kafka era um escritor relativamente desconhecido e excêntrico.

Grete Bloch
Em 1913, por duas vezes visitou Felice Bauer em Berlim; mas fidelidade não fazia parte de sua natureza – em setembro tinha tido um encontro com uma garota suíça, e em novembro se encontrou com Grete Bloch, uma das amigas de Felice. Em abril de 1914, Franz e Felice ficaram noivos; o que não o impediu de levar à frente uma intima correspondência com Grete. Seu noivado com Felice não durou muito, e foi desmanchado em Julho daquele ano.

Em uma nota interessante, após a morte de Kafka, Grete Bloch alegou ter ficado grávida dele no verão de 1914, dando a luz a um filho que morreu aos seis anos – tudo sem que Kafka soubesse. Tais alegações, contudo, foram atacadas por inúmeros biógrafos, e as declarações de Bloch, foram consideradas, no mínimo, questionáveis.

Embora seu noivado desmanchado com Felice fosse o primeiro, estava longe de ser o último. Kafka encarou o casamento como uma situação ideal, algo que o completaria como ser humano. Realisticamente, contudo, ele sabia que uma esposa lhe tomaria o tempo que ele dolorosamente precisava para escrever, o que ele progressivamente encarava como sua salvação. Este é um problema que ele ponderava com freqüência – razões a favor e contra o casamento estão espalhadas por todos os seus diários, algumas vezes até em forma de listas indexando os prós e os contras. Na ausência de uma solução imediata, ele adquiriu os hábitos gêmeos de evasão e procrastinação. Isso o permitiu sonhar sobre a possibilidade de casamento, enquanto se mantinha um escritor em exercício. Ele poderia prometer compromissos tantas vezes quanto quisesse, e nunca ter que dizer às suas noivas, um simples, absoluto e sincero “eu aceito”, isto é, um definitivo “sim”.

O ano de 1914 trouxe a Primeira Guerra Mundial. Em 28 de junho, um revolucionário bósnio assassinou o Arquiduque Francisco Ferdinando, o primeiro na linha de sucessão do Império Austro-Húngaro. As alianças e rivalidades estabelecidas nas últimas décadas, chegaram a um ápice catastrófico, e repentinamente a Europa estava contrapondo-se a si mesma.

Kafka, com um todo, não estava tão preocupado; ou se estava, fez um especial esforço para adotar um irônico ponto de vista. Sua anotação no diário em 2 de agosto registra, “Alemães declararam guerra à Rússia – Natação no fim da tarde”. Em função de seu trabalho para o governo, estava isento do serviço militar; mas alguns de seus parentes não tinham a mesma sorte. Quando seus cunhados retornaram em novembro, Kafka ouviu, em primeira mão, relatos de lutas entrincheiradas. Logo em seguida, ele escreveu Na Colônia Penal, uma brutal estória girando em torno de uma complicada, mas eficiente máquina de terrível violência. É um trabalho particularmente apropriado para períodos de guerra, repleta de aterrorizantes imagens que chocam o leitor, mas também de humor vulgar para afastar o desespero total.

Escrevendo essa novela de pesadelo ajudou a cutucar Kafka de volta a um melhor padrão de produtividade, e ele logo estaria passando suas noites escrevendo outra vez. Ele começou a trabalhar em outra novela, e embora ele não a fosse concluir, boa parte de O Processo foi criado nesse período, incluindo seu início, seu final, e a maioria das seções intermediárias.

O Processo começa com seu personagem principal, Joseph K., caminhando em uma manhã até ser preso por um misterioso tribunal. Em uma tentativa de se libertar, luta através de labirintos de um sistema burocrático, em parte uma paródia da própria Companhia de Seguros de Kafka. Apesar de não concluída, a novela é considerada por muitos como o maior dos seus trabalhos. Uma parábola que mistura fábulas Judias e chinesas com temas cristãos, a passagem se mostra decididamente antiga em sua forma, embora bem moderna em filosofia.

Perante a Lei foi outra projeção para Kafka, de cujo estilo logo se estabeleceu com elementos de mitologia e contos folclóricos recontados. Esta técnica permitiu que suas estórias assumissem a autoridade de história sem revelar um exato significado. Isso também o permitiu explorar uma manipulação mais casual do espaço e do tempo, dando a algumas estórias o aspecto de contos de fadas, como seus principais trabalhos de 1916 claramente demonstram. Em O Caçador Gracus, parece perfeitamente natural que um cadáver falante boiaria até a cidade; enquanto os cavalos mágicos de Um Médico Rural aceleram ou desaceleram dependendo da particular necessidade de Kafka.

Embora 1917 prosseguisse como os últimos anos anteriores – escrevendo continuamente, os estudos de Hebraico, e um segundo noivado com Felice – em agosto, Kafka começou a tossir expelindo sangue. Em 4 de setembro foi diagnosticado como portador da tuberculose. Obteve três semanas de licença, e foi com sua irmã Ottla para Zürau, uma cidade rural noventa quilômetros a noroeste de Praga.


Primeiro Sofrimento

Um tanto hipocondríaco, Kafka sempre foi obcecado por sua saúde incerta. Tomou várias de suas férias como “descansos de cura” em sanatórios, independente do fato de precisar ou não de algum tratamento específico. Expressando cuidado e desdém pela medicina tradicional, se ligou à moda contemporânea de cura natural; embora parecesse que apreciava muito mais suas orientações positivas do que sua real efetividade. Ele não bebia, foi vegetariano por longo período, tinha uma intolerância a barulho, e apreciava ar fresco quase ao ponto de negligência, deixando suas janelas abertas o ano inteiro, e se recusando a usar roupas pesadas no inverno. A despeito da meticulosa atenção concedida a seu corpo, seus cuidados eram frequentemente neutralizados pelas noites insones devotadas a escrever ou consumido pela própria insônia. Em resumo, enquanto seu corpo, em geral, estava em condições saldáveis, ele se arruinava, através de desconhecidas combinações de genes desafortunados, hábitos excêntricos e simples falta de sorte. Usando sua saúde como desculpa, desmanchou seu noivado com Felice pela segunda vez. (Ela superou a situação, casando-se um ano depois). Ele teve que tirar um crescente número de licenças médicas.

Julie WohryzekEm 1918 retornou ao trabalho no Instituto, continuou seus estudos de Hebraico, e assumiu a jardinagem pelo propósito de um trabalho duro; mas foi abatido pela Gripe Espanhola e forçado a tirar outra licença. Naquele novembro, na casa de repouso Schelesen para pacientes tuberculosos, conheceu Julie Wohryzek, uma tímida costureira de Praga. Percebendo que ela tinha uma personalidade similar a de Grete Bloch, Kafka se encantou com sua honestidade e indulgente atenção, e os dois se deixaram levar por um relacionamento romântico. Em uma surpreendente mudança de atitude, ele lhe propôs casamento no verão de 1919 – contra a vontade de seu pai, naturalmente. Hermann a considerava uma vagabunda, indigna do nome Kafka, e descarregou sua ira com paixão, sugerindo que o filho deveria simplesmente visitar um prostíbulo: “Se estiver com medo, eu farei do prostíbulo um negócio meu pra eu mesmo te levar lá”. Naturalmente ferido, Kafka escreveria mais tarde, “Duvido que você já tenha me humilhado verbalmente de forma mais profunda como agora”.

Apesar das boas intenções de Kafka, seu relacionamento com Julie não era uma ameaça para o nome da família. Quando o casal não pode manter o apartamento em que haviam planejado viver, o noivado acabou amigavelmente; embora os dois tivessem mantido uma amizade um tanto aconchegante por muitos anos.

Nessa época, um armistício geral havia sido declarado, e a Paz de Paris fez de Praga uma cidade da nova nação Checoslováquia. De sua parte, Kafka continuava distraído da política internacional – era a política familiar que pesava fortemente em sua mente. Ele retornou para Schelesen para duas semanas de descanso, onde ele derramou Cartas ao Pai.

Durante os primeiros estágios da doença de Kafka, sua vida criativa declinou para um período de ociosidade, sua produtividade definhando para aforismos e fragmentos. Mas fiel aos padrões de seus escritos, o declínio foi seguido de uma repentina explosão de energia – embora dessa vez, o foco não era a ficção. Escrita como uma carta real para o seu pai, e chegando a quase cem páginas, Cartas ao Pai é uma torturante, quase um assustador desvario no qual Kafka apresenta a seu pai cada devastador exemplo de como Hermann arruinou sua vida. Mesmo aos 36 anos, Kafka ainda não conseguia superar seus conflitos com o pai e a família – sempre querendo fugir, sempre compelido a compartilhar, mas ainda se protegendo do desejo de iniciar sua própria família. Felizmente para Hermann, Kafka não possuía o atual endereço do pai, e a carta nunca foi postada – embora ele tenha, eventualmente, a mostrado para sua mãe. (Interessante o fato de que alguns biógrafos argumentam que ela talvez fosse o real alvo da carta).

No final de novembro de 1919, Kafka retornou ao Instituto. Naquele dezembro, Um Médico Rural foi publicado. Uma coleção de Contos escritos entre dezembro de 1916 e abril de 1917, foi dedicada a seu pai, que recebeu com as seguintes palavras, “Coloque-o sobre a mesa de cabeceira”.

Embora Kafka recebesse uma promoção no início de 1920, sua saúde deu uma guinada para pior. A doença tinha avançado para os dois pulmões. Em abril, o novo Secretário Legal do Instituto tirou uma licença estendida indo para Merano, Itália, para aproveitar o famoso ar dos Spas Alpinos. Enquanto em Merano, enviou carta para Milena Josenská-Polak, uma tradutora que o havia contatado no outono de 1919, solicitando autorização para traduzir alguns dos seus trabalhos para o checo. Após um hesitante começo, Milena começou a responder, dando início a um furacão de correspondência.

Milena Jesenska - 1896-1944Em Milena, Kafka finalmente encontrou seu par – ela era uma intelectual, uma verdadeira “Bohemian” em todos os sentidos da palavra. Um espírito livre, leal. Sua existência era um constante estado de rebelião contra seu pai, um rico médico com uma imunda tendência anti-semítica. (Tão disfuncional era esse relacionamento pai-filha que após Milena começar a ver um Judeu, Dr. Jesensky a confinou a um asilo de lunáticos pro nove meses!). Em 1918, Milena realizou o pior pesadelo de seu pai e casou com Ernst Polak, um playboy judeu e Filósofo Positivista Amador. O casal se mudou para Viena, para onde foi para fugir do sofrimento causado por seu pai para encontrar o sofrimento causado pelo marido: Polak não apenas a forçava a ganhar seu próprio salário através de trabalhos manuais. Além disso, ela ficou subnutrida, e desenvolveu problemas de saúde em seus pulmões. Adicionalmente, como um crente professo no amor livre, Ernst não tinha qualquer escrúpulo em procurar relacionamentos fora do casamento.

Milena foi uma entusiástica e talentosa escritora, e quase imediatamente Kafka percebeu que havia encontrado uma mulher que verdadeiramente compartilhava de sua paixão por correspondência. Ele se abriu com Milena como nunca pode se abrir com Felice, e suas cartas a ela são algumas das mais honestas – e controversas, uma vez que ele dá plena expressão às suas frustrações como um Judeu. Encantado pelas traduções feitas por ela do seu trabalho, ele também a respeitava pelos seus próprios escritos, e atendendo sua solicitação, rompeu relações com Julie Wohryzek. Talvez pela primeira vez na vida, Kafka estivesse amando.

Milena não estava satisfeita em manter sua relação epistolar. À medida que as coisas aqueciam, ela começou a pressionar Kafka para encontrá-la em Viena em sua volta de Merano para casa. Ele concordou e os dois passaram quatro dias em Viena – embora tenham se privado de sexo. (Isto levou alguns biógrafos a questionar a potência sexual de Kafka; mas se sua abstenção foi resultado de impotência ou de uma decisão consciente, Milena, inicialmente, parecia compreender sua óbvia angústia sexual). Voltando para casa, Kafka começou a exercer sua própria pressão, sugerindo que Milena deixasse seu marido e se mudasse para Praga. Infelizmente Kafka ainda estava obcecado com casamento – um tanto impraticável dada à situação; e suas cartas mostravam inúmeras e tortuosas formas para que os dois ficassem juntos sem que isso resultasse efetivamente em um divórcio. Suas cartas se tornaram tensas na medida em que Milena sempre encontrava novas razões para permanecer em Viena, desde a saúde de seu marido a um recomeço de sua fidelidade a ele. Finalmente ela concordou em se encontrar com Kafka em Gmünd, uma cidade no caminho entre as duas capitais. Foi um encontro extremamente insatisfatório, cheio de grosserias e desconfortos. Logo em seguida, o affair desmoronou, e Kafka insistiu para que parassem de escrever um ao outro.

Apesar desse agonizante final, os dois continuaram um no pensamento do outro, e Milena o visitou várias vezes quando ele estava doente em 1921. Em um profundo gesto de respeito e boa vontade, Kafka entregou seus diários (aqueles que citavam o relacionamento dos dois) a ela naquele outubro. Eles se encontraram pela última vez em 8 de maio de 1922, quando ele presenteou Milena com o manuscrito incompleto do Der Verschollene (Amerika ou América).


À Noite

A saúde de Kafka esta se tornando insuportável rapidamente, e entre os anos de 1920 e 1922, ele tirou várias licenças estendidas, gastando seu tempo em sanatórios, resorts, ou apenas descansando em Praga. Durante esse tempo, escreveu pouco – explosões de criatividade eram seguidas de longos períodos de silêncio. Em junho de 1922, tendo tentado, sem sucesso, recuperar a força de trabalho, requereu aposentadoria temporária do Instituto. Foi concedida, e estabilizou-se para continuar o trabalho em seu principal projeto – O Castelo – abandonado somente em agosto. Uma severa infecção intestinal trouxe mais sofrimento, e suas condições físicas pioraram. Basicamente confinado a sua cama, Kafka renovou seu interesse por Hebraico, tendo lições de uma jovem tutora, e sonhando sobre uma aposentadoria na Palestina.

Dora Diamant em 1923Em julho de 1923, Kafka escapou para Müritz, um resort à beira-mar, acompanhado de sua irmã Elli e sua família. Lá ele conheceu Dora Diamant de 19 anos, que trabalhava como conselheira em um acampamento judeu de verão nas redondezas. Jovem, bonita e cheia de energia, Dora havia fugido de sua família chassídica (uma forma de Judaísmo místico-radical) na Galícia para tentar a sorte no Leste Europeu que era, de alguma forma, mais amigável com jovens mulheres judias interessadas em negócios fora do seu gueto. Fluente em hebraico e iídiche (Língua germânica falada por judeus, especialmente na Europa central e oriental; Trata-se, basicamente, de introdução, no alemão, de vocabulário hebraico e, em muito menor grau, eslavo. Usam-se, na escrita, caracteres hebraicos), e dotada de uma educação e tendência quase maternal, Dora se mostrou uma perfeita companhia, e em poucas semanas os dois estavam planejando um futuro juntos. Apesar da desaprovação dos pais de ambos – que chocante – os dois se mudaram para Berlin, saltando de um lugar para outro na medida em que a economia desmoronava ao redor deles. Finalmente Kafka havia encontrado o caminho para deixar sua casa.

Dora era firme no que se referia aos cuidados do seu amante enfermo, e Kafka fazia o que podia para se manter ativo. Algumas das últimas excursões de Kafka sob suas próprias forças foram para assistir palestras sobre o Talmude no final do inverno. Vivendo em pobreza, ciente a todo tempo de seu declínio, os dois, contudo, discutiam uma mudança para Tel Aviv, talvez para abrir um restaurante.

Embora Kafka conseguisse continuar escrevendo, essa era uma paixão praticamente não compartilhada por seu novo amor. Dora se sentia entusiasticamente possessiva sobre “seu Kafka”, e via seus escritos como “sem importância na melhor das hipóteses”. Apenas Dora Diamant podia entender Franz Kafka, e seu trabalho era uma não bem-vinda competição pelo seu tempo e atenção. Na verdade, diferente de Max Brod, Dora obedecia aos desejos auto-destrutivos de Kafka, e dos vários trabalhos que criou durante sua estada em Berlin, apenas dois escaparam das chamas.

Lá pela metade de 1924, a saúde de Kafka tinha chegado a um ponto crítico, e ele foi forçado a retornar para Praga, mudando-se de volta para a casa de seus pais. Lá, com agudas dores em sua garganta, escreveu seu último trabalho – Josefine, a Cantora. Algumas semanas mais tarde, Dora chegou e o levou para um sanatório, onde foi diagnosticado com tuberculose avançada. A dor em sua garganta era causada pelas lesões da tuberculose – seus últimos meses seriam vividos em excruciante agonia a cada vez que engolia. Estabelecido em um sanatório perto de Viena, o casal se candidatou à ajuda do Dr. Robert Klopstock, um homem de bom coração embora excêntrico, de quem Kafka tinha se tornado amigo em um sanatório anterior. Na esperança de que ele melhoraria, tomou especial atenção sobre todas e cada uma das instruções do médico, mas sua garganta continuava uma constante fonte de agonia. Se comunicando através de bilhetes, ele começou a corrigir os pedaços de sua próxima publicação: Um Artista da Fome.

Embora produzisse em momentos de esforço aqui e ali, o último trabalho de Kafka atingiu um tom de profunda introspecção, muitas divagações pacientemente tristes diante da perspectiva da morte, as condições do exílio, o papel da comunidade, e a procura de significado que, considerando todas as chances, estava perdido. Se seus primeiros trabalhos buscavam exploravam a relação entre pais e filhos, muitos desses últimos meditavam sobre a relação entre o artista e a sociedade, e muitos críticos têm ressaltado os temas caracteristicamente judaicos do exílio e a busca da identidade cultural. Sua terceira e inacabada última novela, O Castelo, segue a luta de um homem chamado “K” em sua tentativa de reunir a comunidade de um vilarejo. Uma pessoa de fora, K. repetidamente tenta se infiltrar no Castelo que parece governar a cidade, mas esbarra em constantes frustrações. Ele põe em prática, dialogando secretamente com as pessoas da cidade e com os oficiais do Castelo, tornando sua situação mais complicada e sem esperanças – até que a novela simplesmente para no meio de uma frase. A estória Um Artista da Fome, que encerra a coleção de obras de Kafka, fala de um homem que jejua como uma forma de entretenimento público. Como uma metáfora perturbadora, Kafka parece comentar sua destruidora doença, seus impulsos ascéticos, e sua auto-imagem como um artista. Uma de suas últimas e longas narrativas, O Escavador, foi escrito em Berlin durante uma estada prolongada. É contada a partir da perspectiva de um animal que constrói uma enorme casa sob o chão, e usa a maior parte do seu tempo se preocupado sobre ela e a possibilidade de sua destruição. Sua história final, Josefine a Cantora, se passa em uma comunidade de ratos. Uma trêmula corrida perdida em um mundo hostil, em que eles parecem adorar e odiar Josefine, que não é, afinal, competente nas canções, mas apenas sibilante como todos os demais ratos.

Exceto por uma longa carta aos seus pais pouco antes de sua morte, Kafka não escreveu nada depois de Josefine. Mas, contudo, exibiu surpreendente otimismo sobre seu futuro; um otimismo que foi encorajado por Dora, Dr. Klopstock e Max Brod que era visita constante. Como se pra corrigir o tempo perdido, Kafka fez planos para se casar com Dora. Ao escrever ao seu pai pedindo permissão, admitiu que nunca foi um judeu ortodoxo, mas insistiu que estava retornando à sua fé. A resposta foi um brusco “não”.

Naquela noite, Dora viu uma coruja empoleirada na janela de Kafka – o pássaro tanto da sabedoria quanto da morte. Daí em diante, sua saúde sofreu um rápido e firme declínio, com doses diárias de álcool injetado diretamente nos nervos da laringe. Kafka não pararia de pedir ao médico por morfina, e em certo ponto, exigindo de Klopstock, “Me mate, ou do contrário, você é um assassino”. Em outra ocasião, rasgou sua bolsa de gelo, arremessando por todo o quarto com todas as forças que ainda lhe restavam, e gemia, “Não me torture mais, por que prolongar minha agonia?”.

Ao meio-dia de 3 de junho de 1924, Franz Kafka morreu aos quarenta anos de idade. Em seu funeral, Dora caiu sobre o túmulo chorando, enquanto Hermann deu as constas para a cena. Num período de dez anos, tanto seu pai quanto sua mãe seriam sepultados no mesmo túmulo.



A Recusa

Max Brod foi deixado como o executor literário de Kafka, de posse de uma carta o pedindo que queimasse tudo “os diários, manuscritos, cartas (as minhas e as de outros), esboços e assim por diante”, o que incluía qualquer coisa que ele tivesse de qualquer outra pessoa. Os únicos trabalhos a ser mantidos seriam O Veredicto, O Foguista, Na Colônia Penal, A Metamorfose, Um Médico Rural, e Um Artista da Fome. Todo o mais deveria ser queimado.

Naturalmente, Brod tomou uma posição absolutamente contrária, publicando quase tudo que pudesse encontrar. Ele justificou suas ações baseado em conversas que manteve com Kafka três anos antes, quando o amigo fez um pedido similar. Brod havia respondido, “Se você acha seriamente que sou capaz de tal coisa, deixe-me dizer aqui e agora que eu não cumprirei os seus desejos.” Embora alguns críticos pedantes tenham culpado Brod por publicar tais coisas contra a vontade do amigo, a maioria concorda que o pedido de Kafka era um deliberado caso em que o galinheiro é entregue à responsabilidade da raposa – uma forma dissimulada do fazendeiro Kafka publicar suas galinhas enquanto evitava a não adequada aparência de tê-lo feito ele mesmo. Deve ser observado, também, que os críticos de Brod, não parecem ter qualquer problema em realmente ler os trabalhos que salvos das chamas.

Se justificável ou não, a desobediência de Brod nos deu acesso a um tesouro dos trabalhos Kafka: uma montanha de cadernos e anotações de diários, estórias tanto concluídas quanto incompletas, três novelas inacabadas, e alguns deliciosos e bizarros desenhos feitos nas margens de suas anotações. É dito que Brod salvou o trabalho de Kafka duas vezes: uma do próprio julgamento de Kafka, e mais uma vez das mãos dos Nazistas que teriam preferido queima-los a deixar que fossem vistos outra vez.



Partida

O mundo que Kafka conheceu sobreviveu a ele apenas uma década. Sua família e amigos foram deixados para perceber um mundo que excedia até mesmo seus piores pesadelos. Todas as três irmãs de Kafka morreram em campos de concentração, assim como Milena Jesenská-Pollak. Grete Bloch morreu nas mãos de um soldado Nazista. Dora Diamant morreu em Londres em 1952 e Felice Bauer em 1960. Max Brod, após ter certeza de que os trabalhos de seu amigo iriam permanecer e sobrepujar o brilho do seu próprio, morreu em Tel Aviv em 1968.



O Julgamento

Embora na época de sua morte Kafka fosse desconhecido fora de Praga, através dos anos, seus trabalhos e fama se espalharam largamente. Sua influência sobre a literatura moderna é tão impregnante que é quase impossível investigar – Kafka se tornou parte da estrutura dos escritos modernos, e ele é praticamente o dono da letra “K”. Um judeu de língua alemã, de Praga, um advogado que morreu jovem e que odiava a maior parte do que escreveu, teve seu trabalho absorvido por quase todas as culturas através do globo, inspirando escritores tão diversos como Jorge Luis Borges na Argentina, Alain Robbe-Grillet na França, William S. Burroughs nos Estados Unidos, Victor Pelivin na Rússia, Kobo Abe no Japão, José Saramago em Portugal, Gabriel Garcia Marques na Colômbia... e a lista segue.

O sucesso de Kafka pode ser medido por sua presença na cultura popular também – quase todos os estudantes conhecem a estória do cara que virou um inseto, e Kafka é um dos poucos escritores a ser um “nome familiar”. Na verdade, ele se tornou o embaraçado pai do mundo “kafkiano” (ou seja, absurdo, esquisito, sem sentido, onde um cidadão comum se sente indefeso e impotente perante a força da burocracia dominante). Um escritor que se tornou um adjetivo.

Queiramos ou não, Kafka se tornou uma indelével parte de nossa cultura. Suas inseguranças são o que os livros de auto-ajuda têm tentado jogar para baixo do tapete. Seu senso de humor nos mostra quão comicamente enganados estamos. Seus questionamentos espirituais são os mesmos da grande maioria do homem moderno. Os problemas que em sua vida, ilustrados em seu trabalho são os mesmo que temos que enfrentar hoje. Em Kafka, temos o coração de nossa humanidade batendo dentro de poucos e magros volumes. Esse foi e é Kafka na história da humanidade.
Tradução do Site JOSEMAR BESSA